Tenho para mim que a obra máxima de Mario Vargas Llosa é A Orgia Perpétua, o seu livro sobre Flaubert e Madame Bovary. É onde deu mais dele mesmo, um depoimento pessoalíssimo e ao mesmo tempo uma análise acuradíssima da técnica de Flaubert.
É ponto pacífico que o poeta é a pessoa mais indicada para discorrer sobre a poesia, como o romancista é a pessoa mais indicada para falar sobre o romance. Mas não é, a grosso modo, o que ocorre. Como se o poeta ou o romancista fossem os criadores que não sabem, mas fazem. E esse sintagma “não sabem” com um significado que vai além do primeiro enunciado: como se não apenas não soubessem falar sobre a poesia ou o romance, mas também fossem ignorantes da matéria, da carpintaria do poema ou romance.
O que não acontece com Vargas Llosa – é um criador que conhece a técnica da criação e sabe expô-la didaticamente, como um mestre ensinando o ofício a seus discípulos. É admirável o quanto entrega a própria técnica ao expor a técnica de Flaubert. Ficamos de queixo caído: o homem sabe o que faz, conhece seu instrumento de trabalho, como manejá-lo e como ensinar os outros a fazer o mesmo. Mata a cobra e mostra o pau. Não tem vergonha de ensinar a mágica. Não tem medo. Sabe que a mágica continuará sendo admirada mesmo depois de conhecidos os truques. Aliás, nem todos os truques são puros truques – ou são exatamente isso: truques puros, feitiços, encantamentos, passes de mágica.
Como para Flaubert, suportar o fardo da existência só mesmo com a orgia perpétua da literatura. Essa mágica e iluminação. A poética não consta de um conjunto de técnicas, apenas, mas essencialmente de uma iluminação que o artista dá o sangue para atingir.
Vargas Llosa finalmente vai receber o Prêmio Nobel de Literatura. Aplausos. A língua espanhola sente-se gratificada; é uma língua irmã da portuguesa, portanto também nos sentimos gratificados. A América Latina sente-se gratificada; nós, brasileiros, lembramo-nos de que também somos latinos (nem sempre nos lembramos, mas agora é conveniente) – e também nos sentimos gratificados.
Por que nenhum escritor brasileiro foi considerado digno de tal honraria? A nossa língua portuguesa é meio difícil? Há tradutores. Machado de Assis, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Clarice Lispector são sobejamente conhecidos. Por que não foram premiados? Machado e Euclides morreram quando estava sendo criado o Nobel. Mas muita criação menor do que a dos poetas brasileiros foi premiada - menor quanto à qualidade, não ao tom que Bandeira lamentou na sua (“Sou poeta menor, perdoai.”). Os jurados são falíveis.
Na própria língua espanhola, Jorge Luis Borges, um dos maiores criadores do século 20, ficou a ver navios sem receber o Nobel. Borges era um homem de direita – a sua obra não tinha rótulo, como toda arte de valor, mas ele era rotulado como um retrógrado homem de direita. A Academia Sueca tem essa distorção como diretriz: premia personalidades, não artistas. Felizmente no caso de Vargas Llosa, como no de vários outros, houve a feliz coincidência: a personalidade era um grande artista.
Mas Vargas Llosa não era de direita também, como Borges? Seu amigo García Marques foi premiado – era de esquerda, amigo de Fidel Castro (até dizem as más línguas se aproveitou dessa amizade para se promover). Vargas Llosa ganhou o Nobel muitos anos depois, mas ganhou. Não defendia o liberalismo? Oras, mudaria o Nobel ou mudei eu? Aliás, ou mudou o mundo? A questão é essa: mudou o mundo e, com ele, o Nobel. Felizmente, repito, Llosa é coincidentemente um grande escritor.
José Carlos Mendes Brandão
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domingo, 10 de outubro de 2010
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