segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O poema







                                                               O POEMA





                                                 O poeta levou a concha ao ouvido

                                                 e ouviu o mar, um mundo submarino

                                                 familiar e longínquo como o fim do mundo.



                                                As gaivotas vieram das brumas do horizonte

                                                e pousaram nos ombros do poeta.



                                               Navios resfolegavam como cães cansados,

                                               subiam e desciam entre os vagalhões.



                                               O poeta está sentado à mesa da cozinha

                                               ouvindo o apito do trem como se fosse um navio

                                               se aproximando.



                                                                           Olha pela janela as estrelas

                                               caindo.

                                                              Aperta as estrelas no punho fechado.

                                                O relógio está parado.

                                                                                    O poema explode,

                                                o poema mede o tempo com a sua bússola



                                                 de sal, um tempo diferente do tempo dos homens,

                                                  semelhante ao tempo de Deus.

                                                                                                   Depois, o silêncio.



                                                 (O poema se alimenta de silêncio e solidão

                                                  como os homens.)



                                                  ----------

                                                
                                                 José Carlos Mendes Brandão, nov./2010

sábado, 27 de novembro de 2010

Fábulas de Natal (1)








A HORA DO MENINO


Quando o menino quebrar a pedra
Dizendo uma oração sobre os ossos brancos
E gritar para a estrela da manhã: É a hora!
As águas despencarão da cachoeira do tempo

E inundarão os caminhos do homem.
As abelhas descerão do céu.
Os pássaros descerão do céu.
Enxames de anjos rasgarão as cortinas azuis.

Pode baixar a luz!
A virgem lavará a manhã com o sangue do menino.
O menino soltará fogo da boca.

A mulher canta o poema do abismo como um acalanto.
O quarto brilha, saem chamas do quarto.
O menino saiu das coxas da mulher
Para levar o sangue ao mundo.


A NOITE DO MILAGRE

A noite sobre o mar e os barcos dos pescadores,
Com o silêncio pairando como um pássaro morto.
Um cavalo em chamas galopava na montanha,
As árvores voavam para o céu com suas asas de anjo.

À borda do poço ouço o sermão do expatriado.
O galo vermelho se contorce, louco.
A gaivota voa negra sobre as ondas, a gaivota cega.
A égua se imobiliza de cascos erguidos, em vigília.

Estamos à espera do milagre.
A adormecida flutua com a casa em trevas.
Componho a face estranha no espelho.
Semeio flores azuis entre as espumas do mar.

O pescador mostra-me as chagas.
Esta é a noite da fé, a noite do milagre.
Toma o peixe e parte.

__________


José CArlos Mendes Brandão, 2007

_________

terça-feira, 23 de novembro de 2010

O bode chupando manga




O BODE CHUPANDO MANGA

Coisa boa para se ver
num fim de tarde, de sol
queimando até os miolos
é bode chupando manga.

Espada, rosa, coquinho,
manteiga, formiga, ubá,
não escolhe qualidade
o bode chupando manga.

Na avenida, na sarjeta,
vai sério, compenetrado,
o rabo espantando moscas,
o bode chupando manga.

Não existe ocupação
mais séria, mais responsável,
nesta humana condição
que bode chupando manga.

Chamem o prefeito, o juiz,
com o padre e o delegado,
vejam se é crime ou pecado
um bode chupando manga.

Olhem que calamidade,
cuidado, é o fim do mundo,
coisas estranhas sucedem:
um bode chupando manga.

Venham todos admirar
fato nunca imaginado
nesta vida e outra invenção:
um bode chupando manga.

A origem do universo
e o fim de todas as coisas,
nada importa tanto quanto
o bode chupando manga.

A metafísica, o nada,
a náusea, a dor de existir
se evaporam no ar diante
do bode chupando manga.

As guerras, fome, doença,
a destruição do planeta,
tudo se esquece observando
o bode chupando manga.

Fora gregos e romanos,
os poetas e os poetastros
que outro valor se alevanta:
o bode chupando manga.

Humoristas de plantão,
fujam de medo e vergonha:
maior piada não há
que o bode chupando manga.

José Carlos Mendes Brandão

sábado, 20 de novembro de 2010

A Celebração do Natal

Foi uma decepção a leitura de “Crônicas de Natal”, livro editado pela Kopenhagen como brinde de Natal, em 2009. São imagens de solidão e amargura diante do Natal, criadas por alguns dos mais representativos escritores de hoje. Uma exceção seria Moacir Scliar, um judeu sem religião, que faz a lição de casa: pesquisa e escreve um texto leve sobre o Natal na cultura popular brasileira e na literatura; não faz a crônica que se esperava, um relato de sua experiência pessoal com o Natal – porque é judeu e não tem religião. Os outros todos não têm religião, nem consciência do valor da família. A exceção aqui é Nélida Piñon, que sempre valorizou a sua família vinda da Galícia – mas termina melancolicamente lamentando a fé que não tem.

Introduzo o assunto citando esse livro porque a literatura é o reflexo do que a sociedade pensa, sente, vive. Conheci muita gente que não gosta do Natal, sente-se só, sem programa para aquele dia e para a vida – percebe naquele dia que a sua vida não tem sentido. Infelizmente há muita gente que vê tanta festa, luzes e cores, música, alegria, comidas, bebidas, e não tem nada para celebrar.

Celebração. A chave é essa. Nem deveríamos desejar uns aos outros apenas um “Feliz Natal”, mas uma “Feliz Celebração do Natal”. Os presentes, muita comida e bebida, mesmo em excesso, fazem parte da celebração. O que não podemos deixar acontecer é o consumismo pelo consumismo. Apenas gastar, se empanturrar, se embriagar, se não pusermos sentido no ato que realizamos, seremos levados diretamente ao poço da depressão. E olha que não são poucas as famílias, e as não-famílias, os solitários, que não têm nada para celebrar.

O Natal é uma celebração em família. Da família. Celebramos a silenciosa Família de Nazaré, que mudou a história universal. Celebramos a Família Divina – Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Celebramos a Encarnação do Filho, para se tornar um homem como nós, e assim fazer com que nós nos tornemos participantes de sua divindade. Celebramos, nesta celebração do Natal, a vida em sua totalidade.

A Celebração Eucarística é a ceia dos irmãos que se amam, é a consumação do ágape, esse amor quase divino. A Celebração do Natal começa e tem o seu ponto mais alto na Ceia Eucarística, para continuar no lar, com a família reunida festivamente. Quem não puder estar com a família, lembre-se de que estará com a família de Deus, de que todos os homens são seus irmãos, de que Cristo é seu irmão – de que nós celebramos essa Encarnação de Cristo, que veio fazer parte de nossa família. Temos todos os motivos para celebrar – a vida, a criação inteira, a nossa feliz e dolorosa humanidade, as nossas vitórias e derrotas, tudo é motivo para celebrar.

É com o coração transbordando de alegria que podemos nos desejar uns aos outros uma Feliz Celebração do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aleluia!

domingo, 10 de outubro de 2010

A literatura como orgia perpétua

Tenho para mim que a obra máxima de Mario Vargas Llosa é A Orgia Perpétua, o seu livro sobre Flaubert e Madame Bovary. É onde deu mais dele mesmo, um depoimento pessoalíssimo e ao mesmo tempo uma análise acuradíssima da técnica de Flaubert.

É ponto pacífico que o poeta é a pessoa mais indicada para discorrer sobre a poesia, como o romancista é a pessoa mais indicada para falar sobre o romance. Mas não é, a grosso modo, o que ocorre. Como se o poeta ou o romancista fossem os criadores que não sabem, mas fazem. E esse sintagma “não sabem” com um significado que vai além do primeiro enunciado: como se não apenas não soubessem falar sobre a poesia ou o romance, mas também fossem ignorantes da matéria, da carpintaria do poema ou romance.

O que não acontece com Vargas Llosa – é um criador que conhece a técnica da criação e sabe expô-la didaticamente, como um mestre ensinando o ofício a seus discípulos. É admirável o quanto entrega a própria técnica ao expor a técnica de Flaubert. Ficamos de queixo caído: o homem sabe o que faz, conhece seu instrumento de trabalho, como manejá-lo e como ensinar os outros a fazer o mesmo. Mata a cobra e mostra o pau. Não tem vergonha de ensinar a mágica. Não tem medo. Sabe que a mágica continuará sendo admirada mesmo depois de conhecidos os truques. Aliás, nem todos os truques são puros truques – ou são exatamente isso: truques puros, feitiços, encantamentos, passes de mágica.

Como para Flaubert, suportar o fardo da existência só mesmo com a orgia perpétua da literatura. Essa mágica e iluminação. A poética não consta de um conjunto de técnicas, apenas, mas essencialmente de uma iluminação que o artista dá o sangue para atingir.

Vargas Llosa finalmente vai receber o Prêmio Nobel de Literatura. Aplausos. A língua espanhola sente-se gratificada; é uma língua irmã da portuguesa, portanto também nos sentimos gratificados. A América Latina sente-se gratificada; nós, brasileiros, lembramo-nos de que também somos latinos (nem sempre nos lembramos, mas agora é conveniente) – e também nos sentimos gratificados.

Por que nenhum escritor brasileiro foi considerado digno de tal honraria? A nossa língua portuguesa é meio difícil? Há tradutores. Machado de Assis, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Clarice Lispector são sobejamente conhecidos. Por que não foram premiados? Machado e Euclides morreram quando estava sendo criado o Nobel. Mas muita criação menor do que a dos poetas brasileiros foi premiada - menor quanto à qualidade, não ao tom que Bandeira lamentou na sua (“Sou poeta menor, perdoai.”). Os jurados são falíveis.

Na própria língua espanhola, Jorge Luis Borges, um dos maiores criadores do século 20, ficou a ver navios sem receber o Nobel. Borges era um homem de direita – a sua obra não tinha rótulo, como toda arte de valor, mas ele era rotulado como um retrógrado homem de direita. A Academia Sueca tem essa distorção como diretriz: premia personalidades, não artistas. Felizmente no caso de Vargas Llosa, como no de vários outros, houve a feliz coincidência: a personalidade era um grande artista.

Mas Vargas Llosa não era de direita também, como Borges? Seu amigo García Marques foi premiado – era de esquerda, amigo de Fidel Castro (até dizem as más línguas se aproveitou dessa amizade para se promover). Vargas Llosa ganhou o Nobel muitos anos depois, mas ganhou. Não defendia o liberalismo? Oras, mudaria o Nobel ou mudei eu? Aliás, ou mudou o mundo? A questão é essa: mudou o mundo e, com ele, o Nobel. Felizmente, repito, Llosa é coincidentemente um grande escritor.

José Carlos Mendes Brandão

____________

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

ORAÇÃO PELO NASCITURO

Nós vos louvamos, Senhor, Deus da Vida.
Nós vos louvamos por toda a criação,
por todas as criaturas racionais e irracionais,
pelos vegetais e minerais, grandes e pequenos,
por todas as coisas que criastes sobre a terra.
Nós vos louvamos pela vida, Senhor.
Nós vos louvamos pelo Dom da Vida,
o Dom maior que recebemos de vossas mãos.

Nós vos louvamos pelo homem, imperfeito,
teimoso, cego, injusto, mau, infiel, pecador.
Nós vos louvamos, Senhor, pelo homem
que criastes para louvar a vossa criação.
Sabemos que não precisais de nosso reconhecimento,
Senhor de toda a sabedoria criada e não-criada,
Senhor, que sempre soubestes de nossa ingratidão.
Senhor, não precisais de nosso agradecimento;
somos nós que precisamos vos louvar até ao infinito,
porque ou vos louvamos ou nunca seremos nada.

Nós vos louvamos pelo homem que vai nascer
e já é um homem com todas as suas potencialidades.
Nós vos louvamos pelo nascituro no ventre da mãe
gritando com todas as forças a sua vontade de viver.
Nós vos louvamos pelo nascituro que as leis dos homens
querem matar em nome da vida, Senhor Deus da Vida.
Nós vos louvamos pelo nascituro que criastes, Senhor,
e por isso tem todo o direito de nascer, respirar e viver.
As leis dos homens são secas, Senhor, e não valem nada.
As leis dos homens se quebram como pó no caminho.
As leis dos homens não valem nada sem o vosso Espírito,
Senhor Deus da Vida, Criador do universo e da semente
menor que existe, mas que traz a vida clamando em seu bojo.
Senhor, que criastes o nascituro para nascer e não para morrer.
Senhor, sois assassinado por quem não respeita a vida do nascituro
porque ele é fruto do vosso sopro, do vosso Espírito Criador.
Senhor, nós vos louvamos pela vida que recebemos de vossas mãos.
Senhor, nós somos pecadores, com todas as imperfeições humanas,
mas sabemos que vós sois o Pai, o Filho e o Espírito Santo Criador.
Nós nos prostramos e do nosso nada vos adoramos, ó Deus da Vida.
Nós vos damos graças por toda a criação e por todas as criaturas.

___________

sábado, 25 de setembro de 2010

Em alguma parte alguma

Uma pedra é uma pedra


uma pedra

(diz

o filósofo, existe

em si,

não para si

como nós)

uma pedra

é uma pedra

matéria densa

sem qualquer luz

não pensa

ela é somente sua

materialidade

de cousa:

não ousa

enquanto o homem é uma

aflição

que repousa

num corpo

que ele

de certo modo

nega

pois que esse corpo morre

e se apaga

e assim

o homem tenta

livrar-se do fim

que o atormenta

e se inventa



Toada à toa


A vida, apenas se sonha

que é plena, bela ou o que for.

Por mais que nela se ponha

é o mesmo que nada por.

Pois é certo que o vivido

- na alegria ou desespero –

como o gás é consumido...

Recomeçamos de zero.



Off price


Que a sorte me livre do mercado

e que me deixe

continuar fazendo (sem o saber)

fora de esquema

meu poema

inesperado

e que eu possa

cada vez mais desaprender

de pensar o pensado

e assim poder

reinventar o certo pelo errado



Nem aí...


Indiferente

ao suposto prestígio literário

e ao trabalho

do poeta

à difícil faina

a que se entrega para

inventar o dizível,

sobe à mesa

o gatinho

se espreguiça

e deita-se e

adormece

em cima do poema




Perplexidades


a parte mais efêmera

de mim

é esta consciência de que existo

e todo o existir consiste nisto

é estranho!

e mais estranho

ainda

me é sabê-lo

e saber

que esta consciência dura menos

que um fio de meu cabelo

e mais estranho ainda

que sabê-lo

é que

enquanto dura me é dado

o infinito universo constelado

de quatrilhões e quatrilhões de estrelas

sendo que umas poucas delas

posso vê-las

fulgindo no presente do passado

________

Homem Comum

Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.

Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o quarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
bandejas bandeiras bananeiras
tudo
misturado
essa lenha perfumada
que se acende
e me faz caminhar
Sou um homem comum
brasileiro, maior, casado, reservista,
e não vejo na vida, amigo,
nenhum sentido, senão
lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
Quero, por isso, falar com você,
de homem para homem,
apoiar-me em você
oferecer-lhe o meu braço
que o tempo é pouco
e o latifúndio está aí, matando.

Que o tempo é pouco
e aí estão o Chase Bank,
a IT & T, a Bond and Share,
a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,
e sabe-se lá quantos outros
braços do polvo a nos sugar a vida
e a bolsa
Homem comum, igual
a você,
cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.
A sombra do latifúndio
mancha a paisagem
turva as águas do mar
e a infância nos volta
à boca, amarga,
suja de lama e de fome.

Mas somos muitos milhões de homens
comuns
e podemos formar uma muralha
com nossos corpos de sonho e margaridas.

(Brasília, 1963)

Ferreira Gullar

______________

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Fuga para o mar

As ondas vêm e vão na areia da praia.
De um lado a ilha, do outro o mar.
Para onde irei? Todos os caminhos levam ao mar.
Nasci do mar. Nascer é uma vez apenas.
Vou para o mar. A volta à origem é hoje e sempre.

À sombra da figueira eu me deito com as éguas
e os cães sarnentos. Sonho a água do poço
e um pássaro azul como o céu no galho mais próximo.
E se faz manhã e se faz tarde e noite, noite fria
e o mar ruge como um tigre nos rochedos da minha ilha.

Que sei eu da vida? Que amanhã estarei morto.
A vida se olha no espelho e penteia os cabelos da morte.
Uma ossada jaz na cama ao meu lado
e sou eu essa ossada.
Um dia não mais nos levantaremos
e todos os relógios continuarão a trabalhar.
Um dia vai acabar a história e ficarei devendo o aluguel.
Por que não paguei quando estava vivo?
Sempre ficamos devendo o aluguel.

São minhas as palavras. Um dia não serão mais.
Às vezes nem sei se estou vivo ou morto na vitrine.
Répteis me devoram,
meu cadáver se recompõe e continua no tempo.
Quando o cobrador vier, digam que não estou.
O cobrador afia o ancinho para levar a minha cabeça
e eu quero colher ainda muitas estrelas.
Qual é a palavra? Aurora, arnica, manjericão, estupidez?
Todas as palavras são estúpidas na colheita do espantalho.

Quando no meio da noite eu despertar
pendurado no relógio.
Quando no meio da noite o pânico da solidão
me esmagar a cabeça.
Quando no meio da noite a pedra proclamar
que o crime está consumado.
Um novelo de lã se desenrola da aurora à escuridão,
Deus numa ponta, a carne pobre na outra.
Caminhei como um cego no nevoeiro,
todos os caminhos são o mesmo caminho: vão para o mar.

A umidade corrói a porta.
A umidade corrói a chave.
A umidade corrói a casa.
(Com este tempo seco.)
Olho o mar, olho desesperadamente o mar
à minha espera.
Talvez eu não venha.
Talvez eu já tenha ido.

José Carlos Mendes Brandão, 2007.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

RAINER MARIA RILKE E A MORTE

RAINER MARIA RILKE E A MORTE

Ela é sumo e perfume na folhagem
é relâmpago
e açúcar
na polpa fendida

e em todo o bosque
é rumor verde que de copa em copa se propaga
entre estalos e chilreios
a morte
presença e ocultação
circula luminosa
dentro dos caules
e se estende em ramos
abre-se em cores
nas flores nos
insetos (veja
este verde metálico este
azul de metileno) e inspira
o mover mecânico
dos mínimos robôs
da floresta

E ele a ouvia desatento
no próprio corpo
voz contraditória
que vertiginosamente o arrasta através da água
até o fundo da cisterna e
no intenso silêncio
Pensou ver-lhe num susto
o rosto
que se desfez no líquido espelho
(era aquele
o rosto da morte?)
De fato o entrevira
ali no tanque do jardim?

Suspeita que era dele já aquele
olho que o espiava
do cálice da açucena ou a abelha que zumbia
enfiada na corola a sujar-se de
dourado. Ou vida seria?
Nada mais vida (e morte) que esse zunir de luz solar e pólen
na manhã

Era de certo ela, o lampejo
naqueles olhos de um cão
numa pousada em Wursburg.

Mas a morte (a sua) pensava-a como
o clarão lunar
sobre a cordilheira da noite
na radiante solidão
mãe do poema

Sentia-a contornar-lhe o sorriso
esplender-lhe
na boca
pois convive com sua alegria
nesta tarde banal

Sabe que somente os cães ouvem-lhe
o estridente grito
e tentam quem sabe avisá-lo.
Mas adiantaria? Evitaria ferir-se no espinho?

Na verdade
era a morte (não brisa
que aquela tarde
moveu os ramos da roseira)

O futuro não está fora de nós
mas dentro
como a morte
que só nos vem ao encontro
depois de amanhecida
em nosso coração.
E no entanto
ainda que unicamente nossa
assusta-nos.

Por isso finge que não a pressente,
que não a adivinha nos pequenos ruídos
e diz a si mesmo que aquele grito que ouviu
ainda não era ela
terá sido talvez a voz de algum pássaro
novo no bosque

A verdade, porém, é que a mão inflama
todo ele
queima em febre

Que se passa? Está incômodo em seu próprio corpo
este corpo em que sempre
coube como numa luva
macio, e afável, tão próprio que jamais poderia imaginar-se noutro.
E agora o estranha. Olha-se
no espelho: sim são seus
esses olhos azuis,
o olhar porém
esconde algo, talvez
um medo novo. Mira
as mãos de longos dedos: são suas
estas mãos, as unhas, reconhece-as, mas
já não está nelas como antes.
Com estas mãos tocava o mundo
na sua pele
decifrou-se o frescor da água, a veludez
do musgo como
com estes olhos conheceu
a vertigem dos céus matinais
neste corpo
o mar e as ventanias vindas
dos confins do espaço ressoavam
e os inumeráveis barulhos da existência: era ele seu corpo
que agora
ao mundo se fecha
infectado de um sono
que pouco a pouco o anestesia
e anula.

Como sentir de novo na boca (no caldo
da laranja)
o alarido do sol tropical?

Se meu corpo sou eu
como distinguir entre meu corpo e eu?
Quem ouviu por mim
o jorro da carranca
a dizer sempre a mesma água clara?

Agora, porém, este corpo é como uma roupa de fogo
que o veste
e o fecha
aos apelos do dia
Com fastio
vê o pássaro pousar no ramo em frente
já não é alegria
o sopro da tarde em seu rosto
na varanda.

Alguma coisa ocorre
que nada tem a ver com o nascer do poema
que ainda sussurro sob a pele
prometendo a maravilha
(abafado clamor de vozes
ainda por se ouvir
a girar nas flores
e nas constelações)

Alguma coisa ocorre
e se traduz em febre
e faz
a vida ruim
É desagradável estar ali
num corpo doente
que queima
de um fogo enfermo
que cala o mundo
e turva-lhe
o esplendente olhar.

Que se passa afinal?
Será isto
morrer
Terá sido um aviso
o uivo que ouviu
naquela noite prateada em Ullsgraad.

Assim se acaba um homem
que sem resposta iluminou
o indecifrável processo da vida
e em cuja carne sabores e rumores se convertiam
em fala, clarão vocabular,
a acessibilidade do indizível.
E quem dirá
por ele
o que jamais sem ele será dito
e jamais se saberá?

Verdade é que cada um morre sua própria morte
que é única porque
feita do que cada um viveu
e tem os mesmos olhos azuis
que ele
se azuis os teve;
única
porque tudo o que acontece
acontece uma única vez
uma vez
que
infinita é a tessitura
do real: nunca os mesmos cheiros os mesmos
sons os mesmos tons as mesmas
conversas ouvidas no quarto ao lado
nunca
serão as mesmas a diferentes ouvidos
a diferentes vidas
vividas até o momento em que as vozes foram ouvidas ou
o cheiro da fruta se desatou na sala; infinita
é a mistura de carne e delírio
que somos e
por isso
ao morrermos
não perdemos todos as mesmas
coisas já que
não possuímos todos a mesma
quantidade de sol na pele a mesma vertigem na alma
a mesma necessidade de amor
e permanência

E quando enfim se apagar
no curso dos fenômenos este pulsar de vida
quando enfim deixar
de existir
este que se chamou Rainer Maria Rilke
desfeito o corpo em que surgira
e que era ele, Rilke
desfeita a garganta e a mão e a mente
findo aquele que
de modo próprio
dizia a vida
resta-nos buscá-lo nos poemas
onde nossa leitura
de algum modo
acenderá outra vez sua voz

porque
desde aquele amanhecer em Muzot
quando ao lado do dr. Hammerli
subitamente seu olhar se congelou
iniciou-se o caminho ao revés
em direção à desordem

Hoje, tanto tempo depois
quando não é mais possível encontrá-lo
em nenhuma parte
– nem mesmo no áspero chão de Rarogne
onde o enterraram –
melhor é imaginar
se vemos uma rosa
que o nada em que se convertera
pode ser agora, ali, contraditoriamente,
para nosso consolo,
um sono,
ainda que o sono de ninguém sob aquelas muitas pálpebras.

Ferreira Gullar – Em Alguma Parte Alguma, 2010.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Soneto monossilábico




Soneto monossilábico


Meu

pai

cai

réu.


Céu,

sai,

ai,

que eu


quero

ver

Deus,


mero,

ter

réus.


_____


Soneto de José Carlos Mendes Brandão, 1965.


______

terça-feira, 10 de agosto de 2010




Aquarela

As flores-de-São-João dão vida à arvore seca,
O ipê roxo se eleva entre a estrada e o pasto.
A água escorre de uma montanha de pedra
E é como sangue resplandecendo ao sol.

O céu límpido ao fundo dói de tão azul,
Um gavião carcará passa voando e grita.
As plantações de vários tons de verde
Brilham enfileiradas nos montes em frente.

A fumaça espirala-se das casas nas encostas.
Um jumento cansado rumina o universo
Com os olhos tristes, mas com paciência.
E o vento silva sem pressa no capinzal.

Uma capelinha branca na montanha mais alta,
Um inviável barco a vela no pequeno lago,
A água cai, em festa, de uma calha de bambu.
Colhemos, nos olhos abertos, a calma do dia.

______poema de José Carlos Brandão______

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A FAMÍLIA NO DOCUMENTO DE APARECIDA

A FAMÍLIA NO DOCUMENTO DE APARECIDA

A família cristã está fundada no sacramento do matrimônio, sinal do amor de Deus pela humanidade e da entrega de Cristo por sua esposa, a Igreja. Tem seu modelo perfeito na Santíssima Trindade, no amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

A pastoral familiar diocesana deve proclamar o evangelho da família, promover a cultura da vida e trabalhar para que os direitos das famílias sejam reconhecidos e respeitados.

A infância deve ter uma ação prioritária da Igreja, da família e das instituições do Estado. É dolorosa a situação de pobreza, de violência (sobretudo em famílias desintegradas), de abuso sexual; de infância trabalhadora, de rua, portadora de HIV, órfãos, soldados, e enganados e expostos à pornografia e prostituição.

É necessário estimular a pastoral dos adolescentes. Os jovens constituem a grande maioria da população. Por sua generosidade, são chamados a servir a seus irmãos, especialmente aos mais necessitados. Têm capacidade para se opor às falsas ilusões de felicidade e aos paraísos enganosos das drogas, do prazer, do álcool e de todas as formas de violência.

Muitos passam por situações que os afetam: a pobreza, a exclusão, a alienação, novas propostas religiosas e pseudo-religiosas. A educação de baixa qualidade limita seus horizontes de vida e dificulta a tomada de decisões duradouras. São afastados da política pela corrupção e pelo desprestígio dos políticos. Aumentam os suicídios de jovens. Outros não podem estudar ou trabalhar e muitos deixam seus países: é o rosto juvenil da migração. A droga é um apelo constante, de que muitos não conseguem fugir.

A Palavra de Deus nos desafia de muitas maneiras a respeitar e valorizar os mais velhos e anciãos. Muitos são verdadeiros discípulos missionários de Jesus, por seu testemunho e suas obras. A Igreja se sente comprometida a procurar a atenção humana integral de todas as pessoas idosas.

A antropologia cristã ressalta a igual identidade entre homem e mulher em razão de terem sido criados a imagem e semelhança de Deus. O mistério da Trindade nos convida a viver uma comunidade de iguais na diferença. A relação entre a mulher e o homem é de reciprocidade e de colaboração mútua. A mulher é co-responsável pelo presente e pelo futuro de nossa sociedade.

O homem é chamado pelo Deus da vida a ocupar um lugar original e necessário na construção da sociedade, na geração da cultura e na realização da história. Enquanto batizado, o homem deve se sentir enviado pela Igreja a todos os campos de atividade que constituem sua vocação e missão dando testemunho como discípulo e missionário de Jesus Cristo na família.


quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A arte da linguagem


“A arte é uma linguagem própria e criadora, cria outrasrealidades, e as expressa de forma irredutível a outra linguagem. Há os que desejam ver os sonhos explicados com razões claras e definidas, em lugar dos obscuros símbolos com que se manifestam. Mas, a rigor, o sonho expressa uma realidade na única forma em que pode expressar. Mais ainda: essa expressão é sua realidade. O mesmo ocorre com uma sinfonia ou um romance. Que quis dizer Kafka em O Processo? O que está em seu livro. A arte, como o sonho e o mito, é uma ontofania, e acabou-se. Mas, de qualquer forma, é uma revelação de algo e não um fim em si mesma. O que não quer dizer que seja a expressão ou revelação mecânica, o mero reflexo de uma realidade objetiva. Essa ideia do reflexo é um dos lugares-comuns do materialismo vulgar e do positivismo. Madame de Staël chegou a falar de uma “arte republicana” assim como nos falavam de uma “arte burguesa” aqueles stalinistas que obedeciam às ordens do Coronel-General Zdanov. Há, evidentemente, uma relação entre arte e sociedade, e talvez se possa falar de uma homologia. Em uma sociedade como a de hoje, por exemplo, na qual o homem está angustiado pela coisificação, é mais intensa a nostalgia da individualidade perdida, da intimidade avassalada, o eu violado: como não se esperar uma maior tendência à expressãoi lírica? Mas essa atitude não é um reflexo, senão um ato de rebeldia e negação, um ato criativo com que o homem enriquece a realidade preexistente. O homem produz o homem, disse Marx numa frase tão distante do famoso reflexo como um pontapé de um espelho. E nisto, como em tantas outras manifestações do pensamento atual, é prexiso render homenagem ao todo poderoso Hegel e à sua ideia de autocriação do homem. E este homem que se cria a si mesmo o faz através de tudo que o espírito subjetivo é capaz de fazer: desde uma máquina até a poesia. Qualquer obra de arte, mesmo a linguagem, mostra um duplo e dialético caráter: é, ao mesmo tempo, expressão da realidade e uma realidade em si mesma. Uma realidade que não existe fora dessa obra nem antes dela. A linguagem torna-se, assim, uma mediação e um fim em si mesma.” (Ernesto Sábato)

http://gambiarraliteraria.blogspot.com/2010/08/exercicio-de-criacao-1.html

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O 44º Dia Mundial das Comunicações



Dia 16 de maio é o 44º Dia Mundial das Comunicações. Bento XVI, ressaltando a importância desse dia, fala da evangelização no mundo digital. Pede aos sacerdotes que lancem mão dos meios modernos de comunicação, principalmente a internet, que nos últimos anos teve um grande desenvolvimento, para difundir a palavra de Deus no mundo contemporâneo.

Diz que os homens que usam cada vez mais os novos meios de comunicação, devem ouvir, através deles, também o anúncio do Evangelho e conhecer a presença viva de Cristo entre nós.

A humanidade está desorientada hoje em dia e a pastoral digital vai mostrar aos homens que Deus está próximo de nós. É possível mostrar mais eficazmente ao mundo a presença de Cristo, que nos faz parte uns dos outros.

O pontífice lança um desafio aos homens de Deus, que ponham em prática “uma pastoral que torne Deus vivo e atual na realidade de hoje e apresente a sabedoria religiosa do passado como riqueza donde haurir para se viver dignamente o tempo presente e construir adequadamente o futuro”.

“O êxito de sua missão evangelizadora depende, em parte, de seu empenho efetivo no campo dos modernos meios de comunicação, este vasto horizonte missionário que nos foi aberto”.

É bem verdade que o anúncio informatizado não substitui de nenhum modo o contato pessoal com a comunidade. O exemplo, o acolhimento, o carisma do sacerdote, que age na pessoa de Cristo, são fatores essenciais.

É preciso tomarmos consciência de que a Palavra de Deus é cultura, fundamentalmente. Quando a Igreja anuncia a Palavra com os novos meios de comunicação está contribuindo de forma inestimável para o desenvolvimento da cultura e para tornar o homem de hoje mais realizado.

Certamente foi a consciência dessa verdade que levou o Padre Giuliano a criar um blog. Como eu lhe escrevi: “Bento XVI recomendou que os padres tivessem um blog, usassem a internet para tornar mais eficiente seu trabalho evangelizador. É uma grande alegria ver que o meu vigário está seguindo essa diretriz do Papa.”

Pesquisas recentes revelaram que a Igreja italiana, os grupos católicos, as paróquias e as ordens religiosas estão conquistando espaço cada vez mais vasto na galáxia da internet.

Aqui no Brasil, como nas mais diversas partes do mundo, vemos sites e blogs divulgando a Palavra de Deus. A nossa Igreja torna-se assim muito mais ativa com o uso das novas tecnologias.

Deus os abençoe, meus caríssimos irmãos.

terça-feira, 30 de março de 2010

O GRANDE TEMPO PASCAL


Abraão iniciou a passagem do deserto em busca da Terra Prometida. O homem toma consciência de um único Deus. Começa a nascer o povo de Deus. Com muitas dificuldades, com erros sem conta, porque eram homens e não anjos, o povo de Deus iniciou a caminhada, a passagem.

Moisés continua a peregrinação, e são quarenta anos no deserto, com muito sofrimento e muita provação, muitos erros, muita negação de Deus, enquanto se forma o povo de Deus. Era difícil a vida no deserto, o homem sentia-se nu e desamparado, precisava ver Deus – e criava ídolos, que são visíveis.

Foi dificílimo aquele povo rude tornar-se o povo de Deus. Foi dolorosíssima e foi santa a passagem de homem com instintos primitivos a homem filho de Deus. Foi a Santa Páscoa, não somente para a Terra Prometida por Deus, mas para a libertação essencial – porque só Deus liberta.

O Mistério Pascal culmina com a vinda de Cristo, penhor da libertação de todos os homens. Cristo realiza na cruz a passagem libertadora do pecado e da morte para a vida em Deus. Esta passagem, em primeiro lugar de Jesus e depois de todos os homens, deste mundo para o Pai é o sentido último da Páscoa cristã.

É a razão de ser de toda a história da salvação. Para ela se encaminha, desde o princípio, a sucessão dos tempos e das gerações. Nela atinge a plenitude e revela a sua significação total a própria Encarnação do Filho de Deus. Nela finalmente encontra a Igreja de Cristo o alicerce da sua fé e a meta da sua esperança.

A Páscoa, o Mistério Pascal, os acontecimentos pascais com a sua significação divina centram-se na morte de Jesus sobre a Cruz, pela qual Ele passou para o Pai, onde vive na vida nova da Ressurreição. Jesus destrói a morte, torna manifesta a vitória da ressurreição para todos os homens.

Mistério dos mistérios, a passagem do homem para o Pai pela oblação do Cordeiro Pascal.

Nós estamos vivendo o grande tempo pascal: o tempo entre a primeira e a segunda vinda de Cristo, na consumação dos tempos. Vivemos com a essência da alegria, porque Cristo vive entre nós.

Vivemos o Reino de Deus, que veio a nós com a primeira Páscoa de Cristo – para preparar-nos para a Páscoa definitiva. O Reino de Deus é aqui e agora, nesta passagem com Cristo para o Pai.

Este é o sentido da Páscoa: vivermos hoje a presença sacramental de Deus em nós. A Páscoa de Cristo é a nossa Páscoa, a nossa passagem para o Pai.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Deus e os homens

Nos últimos dias li várias vezes sobre o terremoto de Lisboa, que teria levado muita gente ao ateísmo na Europa do século XVIII. Bobagem. O século XVIII é o século do Iluminismo, quando o homem pretendia ter todas as respostas pela razão e, assim, se tornou ateu. O terremoto de Lisboa foi apenas um pretexto para quem queria ser ateu porque estava cego pela razão.

O terremoto do Haiti dói muito na nossa consciência. É assustador, é aterrorizante constatar a pequenez do homem diante da natureza. É mais um motivo para nos aproximarmos de Deus, como os haitianos estão fazendo. Não deve ser tomado como pretexto para abandonarmos Deus, como quer a frieza dos europeus e sua civilização que já perdeu o sentido justamente por se afastar da sua história, que é a história da cristandade.

Conheço bem a ideologia portuguesa na época do terremoto de Lisboa (1755). Os governantes pretendiam ter mais luzes do que os criadores do Iluminismo, na França. O Marquês de Pombal reconstruiu Lisboa, que tinha caído por terra, mas não foi preciso reconstruir a grandeza espiritual do povo português quando se acabou sua tirania ilustrada. O homem português sempre foi grande interiormente.

Assim hoje com o Haiti. Levantamos as mãos aos céus. Clamamos a Deus, e mesmo contra Deus. A nossa fraqueza humana não consegue suportar tamanha dor. Chegamos a culpar Deus, que permite sofrimento assim terrível. É mesmo saudável tal comportamento: revela-nos quem somos, faz-nos refletir, reconhecer a nossa miséria e, enfim, a nossa extrema necessidade de Deus.

O Livro de Jó nos ensina que o sofrimento vem para todos, tanto para os maus como para os bons. O homem tem o direito de ser teimoso e impaciente como Jó, mas não de se afastar de Deus. Quem nega Deus não vê nenhum sentido na vida. Pode se considerar um grande intelectual por seu racionalismo, mas não deixará de ser um grande infeliz.

O Haiti foi condenado à miséria por seus governantes e pelo bloqueio econômico dos outros países há décadas. Agora o mundo inteiro quer salvá-lo, quando sempre foi preciso salvá-lo da ganância e corrupção dos políticos locais e universais. Apenas nessas horas extremas os homens descobrem a fraternidade? Os haitianos continuam nobremente religiosos, não foi preciso um terremoto para descobrirem a extrema necessidade de Deus.