palavras

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O poema







                                                               O POEMA





                                                 O poeta levou a concha ao ouvido

                                                 e ouviu o mar, um mundo submarino

                                                 familiar e longínquo como o fim do mundo.



                                                As gaivotas vieram das brumas do horizonte

                                                e pousaram nos ombros do poeta.



                                               Navios resfolegavam como cães cansados,

                                               subiam e desciam entre os vagalhões.



                                               O poeta está sentado à mesa da cozinha

                                               ouvindo o apito do trem como se fosse um navio

                                               se aproximando.



                                                                           Olha pela janela as estrelas

                                               caindo.

                                                              Aperta as estrelas no punho fechado.

                                                O relógio está parado.

                                                                                    O poema explode,

                                                o poema mede o tempo com a sua bússola



                                                 de sal, um tempo diferente do tempo dos homens,

                                                  semelhante ao tempo de Deus.

                                                                                                   Depois, o silêncio.



                                                 (O poema se alimenta de silêncio e solidão

                                                  como os homens.)



                                                  ----------

                                                
                                                 José Carlos Mendes Brandão, nov./2010

sábado, 27 de novembro de 2010

Fábulas de Natal (1)








A HORA DO MENINO


Quando o menino quebrar a pedra
Dizendo uma oração sobre os ossos brancos
E gritar para a estrela da manhã: É a hora!
As águas despencarão da cachoeira do tempo

E inundarão os caminhos do homem.
As abelhas descerão do céu.
Os pássaros descerão do céu.
Enxames de anjos rasgarão as cortinas azuis.

Pode baixar a luz!
A virgem lavará a manhã com o sangue do menino.
O menino soltará fogo da boca.

A mulher canta o poema do abismo como um acalanto.
O quarto brilha, saem chamas do quarto.
O menino saiu das coxas da mulher
Para levar o sangue ao mundo.


A NOITE DO MILAGRE

A noite sobre o mar e os barcos dos pescadores,
Com o silêncio pairando como um pássaro morto.
Um cavalo em chamas galopava na montanha,
As árvores voavam para o céu com suas asas de anjo.

À borda do poço ouço o sermão do expatriado.
O galo vermelho se contorce, louco.
A gaivota voa negra sobre as ondas, a gaivota cega.
A égua se imobiliza de cascos erguidos, em vigília.

Estamos à espera do milagre.
A adormecida flutua com a casa em trevas.
Componho a face estranha no espelho.
Semeio flores azuis entre as espumas do mar.

O pescador mostra-me as chagas.
Esta é a noite da fé, a noite do milagre.
Toma o peixe e parte.

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José CArlos Mendes Brandão, 2007

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terça-feira, 23 de novembro de 2010

O bode chupando manga




O BODE CHUPANDO MANGA

Coisa boa para se ver
num fim de tarde, de sol
queimando até os miolos
é bode chupando manga.

Espada, rosa, coquinho,
manteiga, formiga, ubá,
não escolhe qualidade
o bode chupando manga.

Na avenida, na sarjeta,
vai sério, compenetrado,
o rabo espantando moscas,
o bode chupando manga.

Não existe ocupação
mais séria, mais responsável,
nesta humana condição
que bode chupando manga.

Chamem o prefeito, o juiz,
com o padre e o delegado,
vejam se é crime ou pecado
um bode chupando manga.

Olhem que calamidade,
cuidado, é o fim do mundo,
coisas estranhas sucedem:
um bode chupando manga.

Venham todos admirar
fato nunca imaginado
nesta vida e outra invenção:
um bode chupando manga.

A origem do universo
e o fim de todas as coisas,
nada importa tanto quanto
o bode chupando manga.

A metafísica, o nada,
a náusea, a dor de existir
se evaporam no ar diante
do bode chupando manga.

As guerras, fome, doença,
a destruição do planeta,
tudo se esquece observando
o bode chupando manga.

Fora gregos e romanos,
os poetas e os poetastros
que outro valor se alevanta:
o bode chupando manga.

Humoristas de plantão,
fujam de medo e vergonha:
maior piada não há
que o bode chupando manga.

José Carlos Mendes Brandão

sábado, 20 de novembro de 2010

A Celebração do Natal

Foi uma decepção a leitura de “Crônicas de Natal”, livro editado pela Kopenhagen como brinde de Natal, em 2009. São imagens de solidão e amargura diante do Natal, criadas por alguns dos mais representativos escritores de hoje. Uma exceção seria Moacir Scliar, um judeu sem religião, que faz a lição de casa: pesquisa e escreve um texto leve sobre o Natal na cultura popular brasileira e na literatura; não faz a crônica que se esperava, um relato de sua experiência pessoal com o Natal – porque é judeu e não tem religião. Os outros todos não têm religião, nem consciência do valor da família. A exceção aqui é Nélida Piñon, que sempre valorizou a sua família vinda da Galícia – mas termina melancolicamente lamentando a fé que não tem.

Introduzo o assunto citando esse livro porque a literatura é o reflexo do que a sociedade pensa, sente, vive. Conheci muita gente que não gosta do Natal, sente-se só, sem programa para aquele dia e para a vida – percebe naquele dia que a sua vida não tem sentido. Infelizmente há muita gente que vê tanta festa, luzes e cores, música, alegria, comidas, bebidas, e não tem nada para celebrar.

Celebração. A chave é essa. Nem deveríamos desejar uns aos outros apenas um “Feliz Natal”, mas uma “Feliz Celebração do Natal”. Os presentes, muita comida e bebida, mesmo em excesso, fazem parte da celebração. O que não podemos deixar acontecer é o consumismo pelo consumismo. Apenas gastar, se empanturrar, se embriagar, se não pusermos sentido no ato que realizamos, seremos levados diretamente ao poço da depressão. E olha que não são poucas as famílias, e as não-famílias, os solitários, que não têm nada para celebrar.

O Natal é uma celebração em família. Da família. Celebramos a silenciosa Família de Nazaré, que mudou a história universal. Celebramos a Família Divina – Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Celebramos a Encarnação do Filho, para se tornar um homem como nós, e assim fazer com que nós nos tornemos participantes de sua divindade. Celebramos, nesta celebração do Natal, a vida em sua totalidade.

A Celebração Eucarística é a ceia dos irmãos que se amam, é a consumação do ágape, esse amor quase divino. A Celebração do Natal começa e tem o seu ponto mais alto na Ceia Eucarística, para continuar no lar, com a família reunida festivamente. Quem não puder estar com a família, lembre-se de que estará com a família de Deus, de que todos os homens são seus irmãos, de que Cristo é seu irmão – de que nós celebramos essa Encarnação de Cristo, que veio fazer parte de nossa família. Temos todos os motivos para celebrar – a vida, a criação inteira, a nossa feliz e dolorosa humanidade, as nossas vitórias e derrotas, tudo é motivo para celebrar.

É com o coração transbordando de alegria que podemos nos desejar uns aos outros uma Feliz Celebração do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aleluia!

domingo, 10 de outubro de 2010

A literatura como orgia perpétua

Tenho para mim que a obra máxima de Mario Vargas Llosa é A Orgia Perpétua, o seu livro sobre Flaubert e Madame Bovary. É onde deu mais dele mesmo, um depoimento pessoalíssimo e ao mesmo tempo uma análise acuradíssima da técnica de Flaubert.

É ponto pacífico que o poeta é a pessoa mais indicada para discorrer sobre a poesia, como o romancista é a pessoa mais indicada para falar sobre o romance. Mas não é, a grosso modo, o que ocorre. Como se o poeta ou o romancista fossem os criadores que não sabem, mas fazem. E esse sintagma “não sabem” com um significado que vai além do primeiro enunciado: como se não apenas não soubessem falar sobre a poesia ou o romance, mas também fossem ignorantes da matéria, da carpintaria do poema ou romance.

O que não acontece com Vargas Llosa – é um criador que conhece a técnica da criação e sabe expô-la didaticamente, como um mestre ensinando o ofício a seus discípulos. É admirável o quanto entrega a própria técnica ao expor a técnica de Flaubert. Ficamos de queixo caído: o homem sabe o que faz, conhece seu instrumento de trabalho, como manejá-lo e como ensinar os outros a fazer o mesmo. Mata a cobra e mostra o pau. Não tem vergonha de ensinar a mágica. Não tem medo. Sabe que a mágica continuará sendo admirada mesmo depois de conhecidos os truques. Aliás, nem todos os truques são puros truques – ou são exatamente isso: truques puros, feitiços, encantamentos, passes de mágica.

Como para Flaubert, suportar o fardo da existência só mesmo com a orgia perpétua da literatura. Essa mágica e iluminação. A poética não consta de um conjunto de técnicas, apenas, mas essencialmente de uma iluminação que o artista dá o sangue para atingir.

Vargas Llosa finalmente vai receber o Prêmio Nobel de Literatura. Aplausos. A língua espanhola sente-se gratificada; é uma língua irmã da portuguesa, portanto também nos sentimos gratificados. A América Latina sente-se gratificada; nós, brasileiros, lembramo-nos de que também somos latinos (nem sempre nos lembramos, mas agora é conveniente) – e também nos sentimos gratificados.

Por que nenhum escritor brasileiro foi considerado digno de tal honraria? A nossa língua portuguesa é meio difícil? Há tradutores. Machado de Assis, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Clarice Lispector são sobejamente conhecidos. Por que não foram premiados? Machado e Euclides morreram quando estava sendo criado o Nobel. Mas muita criação menor do que a dos poetas brasileiros foi premiada - menor quanto à qualidade, não ao tom que Bandeira lamentou na sua (“Sou poeta menor, perdoai.”). Os jurados são falíveis.

Na própria língua espanhola, Jorge Luis Borges, um dos maiores criadores do século 20, ficou a ver navios sem receber o Nobel. Borges era um homem de direita – a sua obra não tinha rótulo, como toda arte de valor, mas ele era rotulado como um retrógrado homem de direita. A Academia Sueca tem essa distorção como diretriz: premia personalidades, não artistas. Felizmente no caso de Vargas Llosa, como no de vários outros, houve a feliz coincidência: a personalidade era um grande artista.

Mas Vargas Llosa não era de direita também, como Borges? Seu amigo García Marques foi premiado – era de esquerda, amigo de Fidel Castro (até dizem as más línguas se aproveitou dessa amizade para se promover). Vargas Llosa ganhou o Nobel muitos anos depois, mas ganhou. Não defendia o liberalismo? Oras, mudaria o Nobel ou mudei eu? Aliás, ou mudou o mundo? A questão é essa: mudou o mundo e, com ele, o Nobel. Felizmente, repito, Llosa é coincidentemente um grande escritor.

José Carlos Mendes Brandão

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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

ORAÇÃO PELO NASCITURO

Nós vos louvamos, Senhor, Deus da Vida.
Nós vos louvamos por toda a criação,
por todas as criaturas racionais e irracionais,
pelos vegetais e minerais, grandes e pequenos,
por todas as coisas que criastes sobre a terra.
Nós vos louvamos pela vida, Senhor.
Nós vos louvamos pelo Dom da Vida,
o Dom maior que recebemos de vossas mãos.

Nós vos louvamos pelo homem, imperfeito,
teimoso, cego, injusto, mau, infiel, pecador.
Nós vos louvamos, Senhor, pelo homem
que criastes para louvar a vossa criação.
Sabemos que não precisais de nosso reconhecimento,
Senhor de toda a sabedoria criada e não-criada,
Senhor, que sempre soubestes de nossa ingratidão.
Senhor, não precisais de nosso agradecimento;
somos nós que precisamos vos louvar até ao infinito,
porque ou vos louvamos ou nunca seremos nada.

Nós vos louvamos pelo homem que vai nascer
e já é um homem com todas as suas potencialidades.
Nós vos louvamos pelo nascituro no ventre da mãe
gritando com todas as forças a sua vontade de viver.
Nós vos louvamos pelo nascituro que as leis dos homens
querem matar em nome da vida, Senhor Deus da Vida.
Nós vos louvamos pelo nascituro que criastes, Senhor,
e por isso tem todo o direito de nascer, respirar e viver.
As leis dos homens são secas, Senhor, e não valem nada.
As leis dos homens se quebram como pó no caminho.
As leis dos homens não valem nada sem o vosso Espírito,
Senhor Deus da Vida, Criador do universo e da semente
menor que existe, mas que traz a vida clamando em seu bojo.
Senhor, que criastes o nascituro para nascer e não para morrer.
Senhor, sois assassinado por quem não respeita a vida do nascituro
porque ele é fruto do vosso sopro, do vosso Espírito Criador.
Senhor, nós vos louvamos pela vida que recebemos de vossas mãos.
Senhor, nós somos pecadores, com todas as imperfeições humanas,
mas sabemos que vós sois o Pai, o Filho e o Espírito Santo Criador.
Nós nos prostramos e do nosso nada vos adoramos, ó Deus da Vida.
Nós vos damos graças por toda a criação e por todas as criaturas.

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sábado, 25 de setembro de 2010

Em alguma parte alguma

Uma pedra é uma pedra


uma pedra

(diz

o filósofo, existe

em si,

não para si

como nós)

uma pedra

é uma pedra

matéria densa

sem qualquer luz

não pensa

ela é somente sua

materialidade

de cousa:

não ousa

enquanto o homem é uma

aflição

que repousa

num corpo

que ele

de certo modo

nega

pois que esse corpo morre

e se apaga

e assim

o homem tenta

livrar-se do fim

que o atormenta

e se inventa



Toada à toa


A vida, apenas se sonha

que é plena, bela ou o que for.

Por mais que nela se ponha

é o mesmo que nada por.

Pois é certo que o vivido

- na alegria ou desespero –

como o gás é consumido...

Recomeçamos de zero.



Off price


Que a sorte me livre do mercado

e que me deixe

continuar fazendo (sem o saber)

fora de esquema

meu poema

inesperado

e que eu possa

cada vez mais desaprender

de pensar o pensado

e assim poder

reinventar o certo pelo errado



Nem aí...


Indiferente

ao suposto prestígio literário

e ao trabalho

do poeta

à difícil faina

a que se entrega para

inventar o dizível,

sobe à mesa

o gatinho

se espreguiça

e deita-se e

adormece

em cima do poema




Perplexidades


a parte mais efêmera

de mim

é esta consciência de que existo

e todo o existir consiste nisto

é estranho!

e mais estranho

ainda

me é sabê-lo

e saber

que esta consciência dura menos

que um fio de meu cabelo

e mais estranho ainda

que sabê-lo

é que

enquanto dura me é dado

o infinito universo constelado

de quatrilhões e quatrilhões de estrelas

sendo que umas poucas delas

posso vê-las

fulgindo no presente do passado

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