quarta-feira, 15 de setembro de 2010

RAINER MARIA RILKE E A MORTE

RAINER MARIA RILKE E A MORTE

Ela é sumo e perfume na folhagem
é relâmpago
e açúcar
na polpa fendida

e em todo o bosque
é rumor verde que de copa em copa se propaga
entre estalos e chilreios
a morte
presença e ocultação
circula luminosa
dentro dos caules
e se estende em ramos
abre-se em cores
nas flores nos
insetos (veja
este verde metálico este
azul de metileno) e inspira
o mover mecânico
dos mínimos robôs
da floresta

E ele a ouvia desatento
no próprio corpo
voz contraditória
que vertiginosamente o arrasta através da água
até o fundo da cisterna e
no intenso silêncio
Pensou ver-lhe num susto
o rosto
que se desfez no líquido espelho
(era aquele
o rosto da morte?)
De fato o entrevira
ali no tanque do jardim?

Suspeita que era dele já aquele
olho que o espiava
do cálice da açucena ou a abelha que zumbia
enfiada na corola a sujar-se de
dourado. Ou vida seria?
Nada mais vida (e morte) que esse zunir de luz solar e pólen
na manhã

Era de certo ela, o lampejo
naqueles olhos de um cão
numa pousada em Wursburg.

Mas a morte (a sua) pensava-a como
o clarão lunar
sobre a cordilheira da noite
na radiante solidão
mãe do poema

Sentia-a contornar-lhe o sorriso
esplender-lhe
na boca
pois convive com sua alegria
nesta tarde banal

Sabe que somente os cães ouvem-lhe
o estridente grito
e tentam quem sabe avisá-lo.
Mas adiantaria? Evitaria ferir-se no espinho?

Na verdade
era a morte (não brisa
que aquela tarde
moveu os ramos da roseira)

O futuro não está fora de nós
mas dentro
como a morte
que só nos vem ao encontro
depois de amanhecida
em nosso coração.
E no entanto
ainda que unicamente nossa
assusta-nos.

Por isso finge que não a pressente,
que não a adivinha nos pequenos ruídos
e diz a si mesmo que aquele grito que ouviu
ainda não era ela
terá sido talvez a voz de algum pássaro
novo no bosque

A verdade, porém, é que a mão inflama
todo ele
queima em febre

Que se passa? Está incômodo em seu próprio corpo
este corpo em que sempre
coube como numa luva
macio, e afável, tão próprio que jamais poderia imaginar-se noutro.
E agora o estranha. Olha-se
no espelho: sim são seus
esses olhos azuis,
o olhar porém
esconde algo, talvez
um medo novo. Mira
as mãos de longos dedos: são suas
estas mãos, as unhas, reconhece-as, mas
já não está nelas como antes.
Com estas mãos tocava o mundo
na sua pele
decifrou-se o frescor da água, a veludez
do musgo como
com estes olhos conheceu
a vertigem dos céus matinais
neste corpo
o mar e as ventanias vindas
dos confins do espaço ressoavam
e os inumeráveis barulhos da existência: era ele seu corpo
que agora
ao mundo se fecha
infectado de um sono
que pouco a pouco o anestesia
e anula.

Como sentir de novo na boca (no caldo
da laranja)
o alarido do sol tropical?

Se meu corpo sou eu
como distinguir entre meu corpo e eu?
Quem ouviu por mim
o jorro da carranca
a dizer sempre a mesma água clara?

Agora, porém, este corpo é como uma roupa de fogo
que o veste
e o fecha
aos apelos do dia
Com fastio
vê o pássaro pousar no ramo em frente
já não é alegria
o sopro da tarde em seu rosto
na varanda.

Alguma coisa ocorre
que nada tem a ver com o nascer do poema
que ainda sussurro sob a pele
prometendo a maravilha
(abafado clamor de vozes
ainda por se ouvir
a girar nas flores
e nas constelações)

Alguma coisa ocorre
e se traduz em febre
e faz
a vida ruim
É desagradável estar ali
num corpo doente
que queima
de um fogo enfermo
que cala o mundo
e turva-lhe
o esplendente olhar.

Que se passa afinal?
Será isto
morrer
Terá sido um aviso
o uivo que ouviu
naquela noite prateada em Ullsgraad.

Assim se acaba um homem
que sem resposta iluminou
o indecifrável processo da vida
e em cuja carne sabores e rumores se convertiam
em fala, clarão vocabular,
a acessibilidade do indizível.
E quem dirá
por ele
o que jamais sem ele será dito
e jamais se saberá?

Verdade é que cada um morre sua própria morte
que é única porque
feita do que cada um viveu
e tem os mesmos olhos azuis
que ele
se azuis os teve;
única
porque tudo o que acontece
acontece uma única vez
uma vez
que
infinita é a tessitura
do real: nunca os mesmos cheiros os mesmos
sons os mesmos tons as mesmas
conversas ouvidas no quarto ao lado
nunca
serão as mesmas a diferentes ouvidos
a diferentes vidas
vividas até o momento em que as vozes foram ouvidas ou
o cheiro da fruta se desatou na sala; infinita
é a mistura de carne e delírio
que somos e
por isso
ao morrermos
não perdemos todos as mesmas
coisas já que
não possuímos todos a mesma
quantidade de sol na pele a mesma vertigem na alma
a mesma necessidade de amor
e permanência

E quando enfim se apagar
no curso dos fenômenos este pulsar de vida
quando enfim deixar
de existir
este que se chamou Rainer Maria Rilke
desfeito o corpo em que surgira
e que era ele, Rilke
desfeita a garganta e a mão e a mente
findo aquele que
de modo próprio
dizia a vida
resta-nos buscá-lo nos poemas
onde nossa leitura
de algum modo
acenderá outra vez sua voz

porque
desde aquele amanhecer em Muzot
quando ao lado do dr. Hammerli
subitamente seu olhar se congelou
iniciou-se o caminho ao revés
em direção à desordem

Hoje, tanto tempo depois
quando não é mais possível encontrá-lo
em nenhuma parte
– nem mesmo no áspero chão de Rarogne
onde o enterraram –
melhor é imaginar
se vemos uma rosa
que o nada em que se convertera
pode ser agora, ali, contraditoriamente,
para nosso consolo,
um sono,
ainda que o sono de ninguém sob aquelas muitas pálpebras.

Ferreira Gullar – Em Alguma Parte Alguma, 2010.

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