Nós vos louvamos, Senhor, Deus da Vida.
Nós vos louvamos por toda a criação,
por todas as criaturas racionais e irracionais,
pelos vegetais e minerais, grandes e pequenos,
por todas as coisas que criastes sobre a terra.
Nós vos louvamos pela vida, Senhor.
Nós vos louvamos pelo Dom da Vida,
o Dom maior que recebemos de vossas mãos.
Nós vos louvamos pelo homem, imperfeito,
teimoso, cego, injusto, mau, infiel, pecador.
Nós vos louvamos, Senhor, pelo homem
que criastes para louvar a vossa criação.
Sabemos que não precisais de nosso reconhecimento,
Senhor de toda a sabedoria criada e não-criada,
Senhor, que sempre soubestes de nossa ingratidão.
Senhor, não precisais de nosso agradecimento;
somos nós que precisamos vos louvar até ao infinito,
porque ou vos louvamos ou nunca seremos nada.
Nós vos louvamos pelo homem que vai nascer
e já é um homem com todas as suas potencialidades.
Nós vos louvamos pelo nascituro no ventre da mãe
gritando com todas as forças a sua vontade de viver.
Nós vos louvamos pelo nascituro que as leis dos homens
querem matar em nome da vida, Senhor Deus da Vida.
Nós vos louvamos pelo nascituro que criastes, Senhor,
e por isso tem todo o direito de nascer, respirar e viver.
As leis dos homens são secas, Senhor, e não valem nada.
As leis dos homens se quebram como pó no caminho.
As leis dos homens não valem nada sem o vosso Espírito,
Senhor Deus da Vida, Criador do universo e da semente
menor que existe, mas que traz a vida clamando em seu bojo.
Senhor, que criastes o nascituro para nascer e não para morrer.
Senhor, sois assassinado por quem não respeita a vida do nascituro
porque ele é fruto do vosso sopro, do vosso Espírito Criador.
Senhor, nós vos louvamos pela vida que recebemos de vossas mãos.
Senhor, nós somos pecadores, com todas as imperfeições humanas,
mas sabemos que vós sois o Pai, o Filho e o Espírito Santo Criador.
Nós nos prostramos e do nosso nada vos adoramos, ó Deus da Vida.
Nós vos damos graças por toda a criação e por todas as criaturas.
___________
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
sábado, 25 de setembro de 2010
Em alguma parte alguma
Uma pedra é uma pedra
uma pedra
(diz
o filósofo, existe
em si,
não para si
como nós)
uma pedra
é uma pedra
matéria densa
sem qualquer luz
não pensa
ela é somente sua
materialidade
de cousa:
não ousa
enquanto o homem é uma
aflição
que repousa
num corpo
que ele
de certo modo
nega
pois que esse corpo morre
e se apaga
e assim
o homem tenta
livrar-se do fim
que o atormenta
e se inventa
Toada à toa
A vida, apenas se sonha
que é plena, bela ou o que for.
Por mais que nela se ponha
é o mesmo que nada por.
Pois é certo que o vivido
- na alegria ou desespero –
como o gás é consumido...
Recomeçamos de zero.
Off price
Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
fora de esquema
meu poema
inesperado
e que eu possa
cada vez mais desaprender
de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado
Nem aí...
Indiferente
ao suposto prestígio literário
e ao trabalho
do poeta
à difícil faina
a que se entrega para
inventar o dizível,
sobe à mesa
o gatinho
se espreguiça
e deita-se e
adormece
em cima do poema
Perplexidades
a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo
e todo o existir consiste nisto
é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo
e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado
________
uma pedra
(diz
o filósofo, existe
em si,
não para si
como nós)
uma pedra
é uma pedra
matéria densa
sem qualquer luz
não pensa
ela é somente sua
materialidade
de cousa:
não ousa
enquanto o homem é uma
aflição
que repousa
num corpo
que ele
de certo modo
nega
pois que esse corpo morre
e se apaga
e assim
o homem tenta
livrar-se do fim
que o atormenta
e se inventa
Toada à toa
A vida, apenas se sonha
que é plena, bela ou o que for.
Por mais que nela se ponha
é o mesmo que nada por.
Pois é certo que o vivido
- na alegria ou desespero –
como o gás é consumido...
Recomeçamos de zero.
Off price
Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
fora de esquema
meu poema
inesperado
e que eu possa
cada vez mais desaprender
de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado
Nem aí...
Indiferente
ao suposto prestígio literário
e ao trabalho
do poeta
à difícil faina
a que se entrega para
inventar o dizível,
sobe à mesa
o gatinho
se espreguiça
e deita-se e
adormece
em cima do poema
Perplexidades
a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo
e todo o existir consiste nisto
é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo
e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado
________
Homem Comum
Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.
Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o quarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
bandejas bandeiras bananeiras
tudo
misturado
essa lenha perfumada
que se acende
e me faz caminhar
Sou um homem comum
brasileiro, maior, casado, reservista,
e não vejo na vida, amigo,
nenhum sentido, senão
lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
Quero, por isso, falar com você,
de homem para homem,
apoiar-me em você
oferecer-lhe o meu braço
que o tempo é pouco
e o latifúndio está aí, matando.
Que o tempo é pouco
e aí estão o Chase Bank,
a IT & T, a Bond and Share,
a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,
e sabe-se lá quantos outros
braços do polvo a nos sugar a vida
e a bolsa
Homem comum, igual
a você,
cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.
A sombra do latifúndio
mancha a paisagem
turva as águas do mar
e a infância nos volta
à boca, amarga,
suja de lama e de fome.
Mas somos muitos milhões de homens
comuns
e podemos formar uma muralha
com nossos corpos de sonho e margaridas.
(Brasília, 1963)
Ferreira Gullar
______________
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.
Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o quarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
bandejas bandeiras bananeiras
tudo
misturado
essa lenha perfumada
que se acende
e me faz caminhar
Sou um homem comum
brasileiro, maior, casado, reservista,
e não vejo na vida, amigo,
nenhum sentido, senão
lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
Quero, por isso, falar com você,
de homem para homem,
apoiar-me em você
oferecer-lhe o meu braço
que o tempo é pouco
e o latifúndio está aí, matando.
Que o tempo é pouco
e aí estão o Chase Bank,
a IT & T, a Bond and Share,
a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,
e sabe-se lá quantos outros
braços do polvo a nos sugar a vida
e a bolsa
Homem comum, igual
a você,
cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.
A sombra do latifúndio
mancha a paisagem
turva as águas do mar
e a infância nos volta
à boca, amarga,
suja de lama e de fome.
Mas somos muitos milhões de homens
comuns
e podemos formar uma muralha
com nossos corpos de sonho e margaridas.
(Brasília, 1963)
Ferreira Gullar
______________
quinta-feira, 23 de setembro de 2010
Fuga para o mar
As ondas vêm e vão na areia da praia.
De um lado a ilha, do outro o mar.
Para onde irei? Todos os caminhos levam ao mar.
Nasci do mar. Nascer é uma vez apenas.
Vou para o mar. A volta à origem é hoje e sempre.
À sombra da figueira eu me deito com as éguas
e os cães sarnentos. Sonho a água do poço
e um pássaro azul como o céu no galho mais próximo.
E se faz manhã e se faz tarde e noite, noite fria
e o mar ruge como um tigre nos rochedos da minha ilha.
Que sei eu da vida? Que amanhã estarei morto.
A vida se olha no espelho e penteia os cabelos da morte.
Uma ossada jaz na cama ao meu lado
e sou eu essa ossada.
Um dia não mais nos levantaremos
e todos os relógios continuarão a trabalhar.
Um dia vai acabar a história e ficarei devendo o aluguel.
Por que não paguei quando estava vivo?
Sempre ficamos devendo o aluguel.
São minhas as palavras. Um dia não serão mais.
Às vezes nem sei se estou vivo ou morto na vitrine.
Répteis me devoram,
meu cadáver se recompõe e continua no tempo.
Quando o cobrador vier, digam que não estou.
O cobrador afia o ancinho para levar a minha cabeça
e eu quero colher ainda muitas estrelas.
Qual é a palavra? Aurora, arnica, manjericão, estupidez?
Todas as palavras são estúpidas na colheita do espantalho.
Quando no meio da noite eu despertar
pendurado no relógio.
Quando no meio da noite o pânico da solidão
me esmagar a cabeça.
Quando no meio da noite a pedra proclamar
que o crime está consumado.
Um novelo de lã se desenrola da aurora à escuridão,
Deus numa ponta, a carne pobre na outra.
Caminhei como um cego no nevoeiro,
todos os caminhos são o mesmo caminho: vão para o mar.
A umidade corrói a porta.
A umidade corrói a chave.
A umidade corrói a casa.
(Com este tempo seco.)
Olho o mar, olho desesperadamente o mar
à minha espera.
Talvez eu não venha.
Talvez eu já tenha ido.
José Carlos Mendes Brandão, 2007.
De um lado a ilha, do outro o mar.
Para onde irei? Todos os caminhos levam ao mar.
Nasci do mar. Nascer é uma vez apenas.
Vou para o mar. A volta à origem é hoje e sempre.
À sombra da figueira eu me deito com as éguas
e os cães sarnentos. Sonho a água do poço
e um pássaro azul como o céu no galho mais próximo.
E se faz manhã e se faz tarde e noite, noite fria
e o mar ruge como um tigre nos rochedos da minha ilha.
Que sei eu da vida? Que amanhã estarei morto.
A vida se olha no espelho e penteia os cabelos da morte.
Uma ossada jaz na cama ao meu lado
e sou eu essa ossada.
Um dia não mais nos levantaremos
e todos os relógios continuarão a trabalhar.
Um dia vai acabar a história e ficarei devendo o aluguel.
Por que não paguei quando estava vivo?
Sempre ficamos devendo o aluguel.
São minhas as palavras. Um dia não serão mais.
Às vezes nem sei se estou vivo ou morto na vitrine.
Répteis me devoram,
meu cadáver se recompõe e continua no tempo.
Quando o cobrador vier, digam que não estou.
O cobrador afia o ancinho para levar a minha cabeça
e eu quero colher ainda muitas estrelas.
Qual é a palavra? Aurora, arnica, manjericão, estupidez?
Todas as palavras são estúpidas na colheita do espantalho.
Quando no meio da noite eu despertar
pendurado no relógio.
Quando no meio da noite o pânico da solidão
me esmagar a cabeça.
Quando no meio da noite a pedra proclamar
que o crime está consumado.
Um novelo de lã se desenrola da aurora à escuridão,
Deus numa ponta, a carne pobre na outra.
Caminhei como um cego no nevoeiro,
todos os caminhos são o mesmo caminho: vão para o mar.
A umidade corrói a porta.
A umidade corrói a chave.
A umidade corrói a casa.
(Com este tempo seco.)
Olho o mar, olho desesperadamente o mar
à minha espera.
Talvez eu não venha.
Talvez eu já tenha ido.
José Carlos Mendes Brandão, 2007.
quarta-feira, 15 de setembro de 2010
RAINER MARIA RILKE E A MORTE
RAINER MARIA RILKE E A MORTE
Ela é sumo e perfume na folhagem
é relâmpago
e açúcar
na polpa fendida
e em todo o bosque
é rumor verde que de copa em copa se propaga
entre estalos e chilreios
a morte
presença e ocultação
circula luminosa
dentro dos caules
e se estende em ramos
abre-se em cores
nas flores nos
insetos (veja
este verde metálico este
azul de metileno) e inspira
o mover mecânico
dos mínimos robôs
da floresta
E ele a ouvia desatento
no próprio corpo
voz contraditória
que vertiginosamente o arrasta através da água
até o fundo da cisterna e
no intenso silêncio
Pensou ver-lhe num susto
o rosto
que se desfez no líquido espelho
(era aquele
o rosto da morte?)
De fato o entrevira
ali no tanque do jardim?
Suspeita que era dele já aquele
olho que o espiava
do cálice da açucena ou a abelha que zumbia
enfiada na corola a sujar-se de
dourado. Ou vida seria?
Nada mais vida (e morte) que esse zunir de luz solar e pólen
na manhã
Era de certo ela, o lampejo
naqueles olhos de um cão
numa pousada em Wursburg.
Mas a morte (a sua) pensava-a como
o clarão lunar
sobre a cordilheira da noite
na radiante solidão
mãe do poema
Sentia-a contornar-lhe o sorriso
esplender-lhe
na boca
pois convive com sua alegria
nesta tarde banal
Sabe que somente os cães ouvem-lhe
o estridente grito
e tentam quem sabe avisá-lo.
Mas adiantaria? Evitaria ferir-se no espinho?
Na verdade
era a morte (não brisa
que aquela tarde
moveu os ramos da roseira)
O futuro não está fora de nós
mas dentro
como a morte
que só nos vem ao encontro
depois de amanhecida
em nosso coração.
E no entanto
ainda que unicamente nossa
assusta-nos.
Por isso finge que não a pressente,
que não a adivinha nos pequenos ruídos
e diz a si mesmo que aquele grito que ouviu
ainda não era ela
terá sido talvez a voz de algum pássaro
novo no bosque
A verdade, porém, é que a mão inflama
todo ele
queima em febre
Que se passa? Está incômodo em seu próprio corpo
este corpo em que sempre
coube como numa luva
macio, e afável, tão próprio que jamais poderia imaginar-se noutro.
E agora o estranha. Olha-se
no espelho: sim são seus
esses olhos azuis,
o olhar porém
esconde algo, talvez
um medo novo. Mira
as mãos de longos dedos: são suas
estas mãos, as unhas, reconhece-as, mas
já não está nelas como antes.
Com estas mãos tocava o mundo
na sua pele
decifrou-se o frescor da água, a veludez
do musgo como
com estes olhos conheceu
a vertigem dos céus matinais
neste corpo
o mar e as ventanias vindas
dos confins do espaço ressoavam
e os inumeráveis barulhos da existência: era ele seu corpo
que agora
ao mundo se fecha
infectado de um sono
que pouco a pouco o anestesia
e anula.
Como sentir de novo na boca (no caldo
da laranja)
o alarido do sol tropical?
Se meu corpo sou eu
como distinguir entre meu corpo e eu?
Quem ouviu por mim
o jorro da carranca
a dizer sempre a mesma água clara?
Agora, porém, este corpo é como uma roupa de fogo
que o veste
e o fecha
aos apelos do dia
Com fastio
vê o pássaro pousar no ramo em frente
já não é alegria
o sopro da tarde em seu rosto
na varanda.
Alguma coisa ocorre
que nada tem a ver com o nascer do poema
que ainda sussurro sob a pele
prometendo a maravilha
(abafado clamor de vozes
ainda por se ouvir
a girar nas flores
e nas constelações)
Alguma coisa ocorre
e se traduz em febre
e faz
a vida ruim
É desagradável estar ali
num corpo doente
que queima
de um fogo enfermo
que cala o mundo
e turva-lhe
o esplendente olhar.
Que se passa afinal?
Será isto
morrer
Terá sido um aviso
o uivo que ouviu
naquela noite prateada em Ullsgraad.
Assim se acaba um homem
que sem resposta iluminou
o indecifrável processo da vida
e em cuja carne sabores e rumores se convertiam
em fala, clarão vocabular,
a acessibilidade do indizível.
E quem dirá
por ele
o que jamais sem ele será dito
e jamais se saberá?
Verdade é que cada um morre sua própria morte
que é única porque
feita do que cada um viveu
e tem os mesmos olhos azuis
que ele
se azuis os teve;
única
porque tudo o que acontece
acontece uma única vez
uma vez
que
infinita é a tessitura
do real: nunca os mesmos cheiros os mesmos
sons os mesmos tons as mesmas
conversas ouvidas no quarto ao lado
nunca
serão as mesmas a diferentes ouvidos
a diferentes vidas
vividas até o momento em que as vozes foram ouvidas ou
o cheiro da fruta se desatou na sala; infinita
é a mistura de carne e delírio
que somos e
por isso
ao morrermos
não perdemos todos as mesmas
coisas já que
não possuímos todos a mesma
quantidade de sol na pele a mesma vertigem na alma
a mesma necessidade de amor
e permanência
E quando enfim se apagar
no curso dos fenômenos este pulsar de vida
quando enfim deixar
de existir
este que se chamou Rainer Maria Rilke
desfeito o corpo em que surgira
e que era ele, Rilke
desfeita a garganta e a mão e a mente
findo aquele que
de modo próprio
dizia a vida
resta-nos buscá-lo nos poemas
onde nossa leitura
de algum modo
acenderá outra vez sua voz
porque
desde aquele amanhecer em Muzot
quando ao lado do dr. Hammerli
subitamente seu olhar se congelou
iniciou-se o caminho ao revés
em direção à desordem
Hoje, tanto tempo depois
quando não é mais possível encontrá-lo
em nenhuma parte
– nem mesmo no áspero chão de Rarogne
onde o enterraram –
melhor é imaginar
se vemos uma rosa
que o nada em que se convertera
pode ser agora, ali, contraditoriamente,
para nosso consolo,
um sono,
ainda que o sono de ninguém sob aquelas muitas pálpebras.
Ferreira Gullar – Em Alguma Parte Alguma, 2010.
Ela é sumo e perfume na folhagem
é relâmpago
e açúcar
na polpa fendida
e em todo o bosque
é rumor verde que de copa em copa se propaga
entre estalos e chilreios
a morte
presença e ocultação
circula luminosa
dentro dos caules
e se estende em ramos
abre-se em cores
nas flores nos
insetos (veja
este verde metálico este
azul de metileno) e inspira
o mover mecânico
dos mínimos robôs
da floresta
E ele a ouvia desatento
no próprio corpo
voz contraditória
que vertiginosamente o arrasta através da água
até o fundo da cisterna e
no intenso silêncio
Pensou ver-lhe num susto
o rosto
que se desfez no líquido espelho
(era aquele
o rosto da morte?)
De fato o entrevira
ali no tanque do jardim?
Suspeita que era dele já aquele
olho que o espiava
do cálice da açucena ou a abelha que zumbia
enfiada na corola a sujar-se de
dourado. Ou vida seria?
Nada mais vida (e morte) que esse zunir de luz solar e pólen
na manhã
Era de certo ela, o lampejo
naqueles olhos de um cão
numa pousada em Wursburg.
Mas a morte (a sua) pensava-a como
o clarão lunar
sobre a cordilheira da noite
na radiante solidão
mãe do poema
Sentia-a contornar-lhe o sorriso
esplender-lhe
na boca
pois convive com sua alegria
nesta tarde banal
Sabe que somente os cães ouvem-lhe
o estridente grito
e tentam quem sabe avisá-lo.
Mas adiantaria? Evitaria ferir-se no espinho?
Na verdade
era a morte (não brisa
que aquela tarde
moveu os ramos da roseira)
O futuro não está fora de nós
mas dentro
como a morte
que só nos vem ao encontro
depois de amanhecida
em nosso coração.
E no entanto
ainda que unicamente nossa
assusta-nos.
Por isso finge que não a pressente,
que não a adivinha nos pequenos ruídos
e diz a si mesmo que aquele grito que ouviu
ainda não era ela
terá sido talvez a voz de algum pássaro
novo no bosque
A verdade, porém, é que a mão inflama
todo ele
queima em febre
Que se passa? Está incômodo em seu próprio corpo
este corpo em que sempre
coube como numa luva
macio, e afável, tão próprio que jamais poderia imaginar-se noutro.
E agora o estranha. Olha-se
no espelho: sim são seus
esses olhos azuis,
o olhar porém
esconde algo, talvez
um medo novo. Mira
as mãos de longos dedos: são suas
estas mãos, as unhas, reconhece-as, mas
já não está nelas como antes.
Com estas mãos tocava o mundo
na sua pele
decifrou-se o frescor da água, a veludez
do musgo como
com estes olhos conheceu
a vertigem dos céus matinais
neste corpo
o mar e as ventanias vindas
dos confins do espaço ressoavam
e os inumeráveis barulhos da existência: era ele seu corpo
que agora
ao mundo se fecha
infectado de um sono
que pouco a pouco o anestesia
e anula.
Como sentir de novo na boca (no caldo
da laranja)
o alarido do sol tropical?
Se meu corpo sou eu
como distinguir entre meu corpo e eu?
Quem ouviu por mim
o jorro da carranca
a dizer sempre a mesma água clara?
Agora, porém, este corpo é como uma roupa de fogo
que o veste
e o fecha
aos apelos do dia
Com fastio
vê o pássaro pousar no ramo em frente
já não é alegria
o sopro da tarde em seu rosto
na varanda.
Alguma coisa ocorre
que nada tem a ver com o nascer do poema
que ainda sussurro sob a pele
prometendo a maravilha
(abafado clamor de vozes
ainda por se ouvir
a girar nas flores
e nas constelações)
Alguma coisa ocorre
e se traduz em febre
e faz
a vida ruim
É desagradável estar ali
num corpo doente
que queima
de um fogo enfermo
que cala o mundo
e turva-lhe
o esplendente olhar.
Que se passa afinal?
Será isto
morrer
Terá sido um aviso
o uivo que ouviu
naquela noite prateada em Ullsgraad.
Assim se acaba um homem
que sem resposta iluminou
o indecifrável processo da vida
e em cuja carne sabores e rumores se convertiam
em fala, clarão vocabular,
a acessibilidade do indizível.
E quem dirá
por ele
o que jamais sem ele será dito
e jamais se saberá?
Verdade é que cada um morre sua própria morte
que é única porque
feita do que cada um viveu
e tem os mesmos olhos azuis
que ele
se azuis os teve;
única
porque tudo o que acontece
acontece uma única vez
uma vez
que
infinita é a tessitura
do real: nunca os mesmos cheiros os mesmos
sons os mesmos tons as mesmas
conversas ouvidas no quarto ao lado
nunca
serão as mesmas a diferentes ouvidos
a diferentes vidas
vividas até o momento em que as vozes foram ouvidas ou
o cheiro da fruta se desatou na sala; infinita
é a mistura de carne e delírio
que somos e
por isso
ao morrermos
não perdemos todos as mesmas
coisas já que
não possuímos todos a mesma
quantidade de sol na pele a mesma vertigem na alma
a mesma necessidade de amor
e permanência
E quando enfim se apagar
no curso dos fenômenos este pulsar de vida
quando enfim deixar
de existir
este que se chamou Rainer Maria Rilke
desfeito o corpo em que surgira
e que era ele, Rilke
desfeita a garganta e a mão e a mente
findo aquele que
de modo próprio
dizia a vida
resta-nos buscá-lo nos poemas
onde nossa leitura
de algum modo
acenderá outra vez sua voz
porque
desde aquele amanhecer em Muzot
quando ao lado do dr. Hammerli
subitamente seu olhar se congelou
iniciou-se o caminho ao revés
em direção à desordem
Hoje, tanto tempo depois
quando não é mais possível encontrá-lo
em nenhuma parte
– nem mesmo no áspero chão de Rarogne
onde o enterraram –
melhor é imaginar
se vemos uma rosa
que o nada em que se convertera
pode ser agora, ali, contraditoriamente,
para nosso consolo,
um sono,
ainda que o sono de ninguém sob aquelas muitas pálpebras.
Ferreira Gullar – Em Alguma Parte Alguma, 2010.
quinta-feira, 9 de setembro de 2010
Soneto monossilábico
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