quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Fuga para o mar

As ondas vêm e vão na areia da praia.
De um lado a ilha, do outro o mar.
Para onde irei? Todos os caminhos levam ao mar.
Nasci do mar. Nascer é uma vez apenas.
Vou para o mar. A volta à origem é hoje e sempre.

À sombra da figueira eu me deito com as éguas
e os cães sarnentos. Sonho a água do poço
e um pássaro azul como o céu no galho mais próximo.
E se faz manhã e se faz tarde e noite, noite fria
e o mar ruge como um tigre nos rochedos da minha ilha.

Que sei eu da vida? Que amanhã estarei morto.
A vida se olha no espelho e penteia os cabelos da morte.
Uma ossada jaz na cama ao meu lado
e sou eu essa ossada.
Um dia não mais nos levantaremos
e todos os relógios continuarão a trabalhar.
Um dia vai acabar a história e ficarei devendo o aluguel.
Por que não paguei quando estava vivo?
Sempre ficamos devendo o aluguel.

São minhas as palavras. Um dia não serão mais.
Às vezes nem sei se estou vivo ou morto na vitrine.
Répteis me devoram,
meu cadáver se recompõe e continua no tempo.
Quando o cobrador vier, digam que não estou.
O cobrador afia o ancinho para levar a minha cabeça
e eu quero colher ainda muitas estrelas.
Qual é a palavra? Aurora, arnica, manjericão, estupidez?
Todas as palavras são estúpidas na colheita do espantalho.

Quando no meio da noite eu despertar
pendurado no relógio.
Quando no meio da noite o pânico da solidão
me esmagar a cabeça.
Quando no meio da noite a pedra proclamar
que o crime está consumado.
Um novelo de lã se desenrola da aurora à escuridão,
Deus numa ponta, a carne pobre na outra.
Caminhei como um cego no nevoeiro,
todos os caminhos são o mesmo caminho: vão para o mar.

A umidade corrói a porta.
A umidade corrói a chave.
A umidade corrói a casa.
(Com este tempo seco.)
Olho o mar, olho desesperadamente o mar
à minha espera.
Talvez eu não venha.
Talvez eu já tenha ido.

José Carlos Mendes Brandão, 2007.

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